quinta-feira, 19 de março de 2009

Gato Preto


Ontem à tarde, na rua, vi uma menina com uma tatuagem que me fez rir. Na pele, um gato preto de presas visíveis, com um número "13" à cabeça.

Lembrei imediatamente do meu amigo Hector.

Hector é um gato que vive aqui em casa. Carinhoso a ponto de dar cabeçadas na minha cara em busca de um afago. Ou de leite, que poderia sair do meu nariz. Vai entender a cabeça de gatos desmamados. Cabeçadas que podem ser dadas no copo de suco que levo à boca, e que, depois da investida do meu amigo, quase quebra meus dentes da frente. Carência brutal.

Pois Hector, um gato preto preto preto, até o última sexta-feira 13 se chamava Satanás. Um nome que fazia nosso bicho ser uma espécie de piada semi-ofensiva ambulante. Ou um amaldiçoado. Ou um protegido de e por forças invisíveis.

O fato é que nesse dia, Satanás, em um surto de "tudo é possível", tentou ir da área de serviço para a cozinha de nosso apartamento através de uma janela, ignorando o fato de que a fresta da mesma era alta e estreita demais para que seu pequeno corpo pudesse passar. Não conseguindo enfiar a cabeça, tentou as patas. As duas. Que se soltaram. Satanás, o gato preto, caiu da janela. Som de corpo contra o chão.

Miou desesperado. Não conseguia vê-lo. Noite escura, de chuva. Os miados de dor deixavam claro que sua curta vida seria extinta em instantes. Eu, que, estático, o vi tentar passar pela janela e cair, torcia para que o som não cessasse. Ou deveria torcer para que morresse logo e deixasse de sofrer? O fato é que consegui avistá-lo graças ao flash de uma máquina fotográfica que disparei no que eu achava ser sua direção. E era. Ele apenas me olhava. Parado. Sereno. Bem. E não eram seus destroços, era seu corpo preto e vivo.

Passou a madrugada na área de serviço da vizinha de baixo, que teve medo de abrir a porta de sua casa quando eu e Carol, já durante a madrugada, tentamos resgatá-lo.

No dia seguinte, Satanás voltou para o nosso lar. Talvez tenha sobrevivido por ser leve. Talvez por ser gato. Talvez pelo nome. Vai saber. Por mais que eu não acredite em diabo, acho que muitas pessoas que já morreram acreditam. E, na dúvida, não preciso ser alvo nem de aprovação nem de reprovação de seres não-vivos.

Só sei que no mesmo dia mudamos o nome do gato para Hector. Homenagem a um moleque que estudava comigo e que, aos sete anos, foi o primeiro ser humano que vi, ao vivo, fazer um gol de bicicleta. Nem sabia que crianças podiam fazer aquilo.

Desde a última sexta-feira 13, conforme os dias passam, mais e mais improváveis pelos brancos insistem em surgir no corpo do gato, como se a pureza precisasse que o antigo nome fosse embora para poder se fazer presente.

Maculado por algo bom ou salvo por algo mal, o gato dorme. E come. E pede atenção. Ou quebra meus dentes.

Um dia a menina da tatuagem terá paz e cabelos brancos, que talvez cobrirão a antiga imagem. Tomara que, para isso, ela não precise cair de uma janela ou mudar de nome.


* A pintura que retrata o post é uma gravura de Sandra Merwin. Para contatar a artista e adquirir a obra, clique aqui.

Um comentário:

Marcella Bié disse...

Lembro-me da última vez que tive um gato, o qual também era portador da carência brutal. Se foi, cedo.

Também, sempre preferi não testar o Diabo, ou o sei lá o quê.

Satanás é um cara engraçado.
Ops! Hector, é um cara engraçado.