segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Rotina

Oswaldo Freitas, cinqüenta e dois anos, cabelos brancos em uma cabeça já não tão repleta de cabelos, tem uma rotina e se orgulha dela. Acordar às seis todo dia é sua vida. Ver se o canário dormiu bem, dar aquela olhada pela janela e ligar o som para ouvir sua música clássica. Sol escaldante, árvores quase derretendo, mas agradecido sempre está este senhor pela oportunidade de ter saúde suficiente para ainda ser útil à sociedade. Mais um dia se inicia.

Roupa é capítulo fundamental no seu dia-a-dia. Sempre lembra do pai, que sempre dizia que “a vestimenta garante respeito ao homem decente”. Checar e garantir o brilho dos sapatos, constatar a ausência de máculas em suas meias escuras, conferir se o terno está impecável, se o cinto preto é a melhor escolha, se o chapéu é o melhor que possui em sua vasta coleção e se a gravata é aquela que nunca havia usado. Tudo perfeito. Um pós-barba para completar.

Verificar a pasta. De couro. Documentos, anotações, agenda de telefones e uma miniatura de três centímetros em plástico de Nossa Senhora de Fátima. Canetas e lenço de pano. Celular carregado e devidamente guardado. Alguma ligação perdida durante a madrugada? Não, hoje nenhuma. Esquecendo de algo? Não. Seu sistema de cumprimento de tarefas habituais é praticamente infalível. A rua lhe aguarda.

Porta fechada, chave girada, olá ao senhor da banca de jornal. “Flamengo vence o Goiás”. Oswaldo relembra o gol de Obina visto ontem no restaurante da praça mas sabe que o time podia ter perdido. “O técnico expôs a zaga”, ele pensa. Café na padaria, alô aos taxistas. Ônibus. Na viagem até o centro muito pode ser pensado, então Oswaldo contabiliza o tempo que gasta diariamente com esse deslocamento até o coração cinza da cidade. Relógio pesado de tão bonito marca as horas que ele precisa para não se preocupar com um possível atraso. Dá tempo e sobra. Seu sistema de cumprimento de tarefas é, na verdade, infalível, e permite uma viagem tranqüila, sem qualquer tipo de luta contra o ponteiro. Pouco trânsito. O sol segue intenso. “Filtro solar na cabeça só em 2060”, calcula. “Como esses prédios antigos são grandes”.

Pé na rua, na imensidão do centro da cidade. Engarrafamento de pessoas. Compram jóias, vendem moças, chocolates e candidaturas a deputado estadual. Oswaldo, íntegro e já insensível a essas práticas, ignora as investidas e aperta o passo. Dribla o catador de papelão e seu carro fantástico. Se o relógio marca oito e doze, a temperatura é de trinta e nove graus. Madrugadas quentes foram essas duas últimas, com água fresca para o canário a cada três horas.

Destino alcançado. Saltando do ônibus em um largo repleto de gente que caminha em direções opostas. Todas as direções são opostas. Gente engravatada que surge do chão. Novos cortes de cabelo, novas revistas, novas combinações de sucos, novas formas de andar de metrô, policiais femininas, caras de Maria Fernanda Cândido e Cléo Pires pintadas por artistas cegos. “Aquele menino tem cara de operador de xerox”. Apressadas moças em terninhos falando em celulares palavras de arame aos namorados de óculos escuros sentados em salas geladas ouvindo música adulta do outro lado do Rio. Oswaldo olha o sol e confirma para si os quarenta e quatro graus daquela tarde. Afrouxe a gravata, senhor, e resmungue algo sobre a temperatura. Um carro de som diz para que se vote no Wilson do Escritório. Prédios altos demais, mesmo antigos. Como assim? Por dentro, madeira e executivos com salas vizinhas às das prostitutas. Pessoas cinza. Saxofone. Caixas eletrônicos agarram cabeças. A mulher grávida corta o braço e seu filho sai por seu pulso. O rasgado terno marrom de sol e a calça bege puída de Oswaldo não deixam muitas dúvidas, tampouco os sapatos abertos nas solas e o chapéu de camurça verde escuro manchado de água sanitária. “Será que o canário bebeu a água?”

Vagando com sua pasta repleta de lixo pelas ruas do centro da cidade, Oswaldo adora os dias de sol.

4 comentários:

Anônimo disse...

Dá-lhe Oswaldo! Sou mais você que o Abadía!!!
Se a água sanitária manchasse a calça bege em tom-sobre-tom iria virar moda. Corra, Oswaldo! Venda o lixo para reciclagem e registre essa patente!
Sr. Doerzapff.

César Marins disse...

Isso foi assaz Los Hermanos, e rios, e janeiros, e coisas assim.

Todo dia ele faz tudo sempre igual.

E tudo mais.

Hoo-ah. Viveremos nas manhãs de sol, só. Acho que é isso que resume nossas vidas, o sol e a ausência dele.

Anônimo disse...

Foi bom o filho da mulher ter saído pelo pulso. Assim, vai direto ao colo da mãe.
Sr. Doerzapff

Anônimo disse...

não acredito em nada que vejo.
é tudo farsa; mentira.

especialmente as palavras, os acordes, estruturas, sorrisos e olhares.

corre.

beijos,
vitor.